Produtos produzidos pelas abelhas e seus recursos terapêuticos (apiterapia), conhecidos de antigas civilizações, são reconhecidos e estudados no mundo inteiro, beneficiando indivíduos saudáveis e doentes, incluindo pessoas afetadas pela Covid-19

Redação e Edição: Katia Machado

Revisão Científica: Ricardo Ghelman, Caio Portella e Gelza Matos Nunes

O uso de produtos de abelhas com fins terapêuticos remonta à Antiguidade. Na Índia, o uso do mel aplicado em massagens para edemas data de mais de seis mil anos. A primeira referência aos efeitos terapêuticos do veneno da abelha, por sua vez, data de 500 AC, registrada no Hungdi Neijing, Manual de Medicina Tradicional Chinesa, no qual são mencionadas as propriedades do veneno. Um século depois, na Grécia, Hipócrates, pai da medicina moderna, mencionou o veneno das abelhas, definindo-o como “Arcanum“, por suas propriedades inexplicavelmente benéficas. Vale saber que a apiterapia, baseada nos efeitos terapêuticos dos produtos da Apis mellifica, etimologicamente é representada por um dos seus produtos, a própolis, palavra de origem grega pró (defesa) + polis (cidade), fazendo referência à defesa do organismo.  

Em 1888, o médico austríaco Philip Terc, considerado o pioneiro da Apiterapia na modernidade, escreveu o primeiro artigo científico sobre o tema, intitulado “Relatório sobre uma conexão peculiar entre as picadas de abelha e o reumatismo”, por meio do qual monitorou o efeito positivo do tratamento com veneno de abelha em uma amostra de pacientes afetados por artrite reumatóide. Mais tarde, por volta dos anos 1920, o trabalho do Dr. Bodog Beck, sob o título Bee venom therapy, passou a reunir todo o conhecimento europeu sobre o assunto, tornando-se referência para a apiterapia mundial e fonte de inspiração para Charles Marz, fundador da Sociedade Americana de Apiterapia. 

 

Apiterapia científica

A partir de então, surge a apiterapia científica, elucida a pesquisadora Erika Cardozo Pereira, coordenadora do Mapa de Evidências Clínicas da Apiterapia, conduzido pelo Consórcio Acadêmico Brasileiro de Saúde Integrativa (CABSIN) e Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde da Organização Pan-Americana da Saúde (Bireme/OPAS/OMS), com apoio da Coordenação Nacional das Práticas Integrativas e Complementares de Saúde do Ministério da Saúde e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). 

Especialista em apiterapia, com formação na Alemanha, e professor em Fitoterapia da Universidade de São Paulo (USP), o médico Mikhael Marques resume:

“Apiterapia implica usar todos os produtos da abelha, com ferrão ou sem ferrão”. Ele reforça que tanto o mel, a própolis, a geleia real, o pólen e a toxina da abelha podem beneficiar indivíduos saudáveis e doentes. “A maioria dos produtos são alimentos funcionais, indicados para indivíduos saudáveis, que querem prevenir doenças, e indivíduos doentes, como uma prática integrativa, aliada ao tratamento convencional”, complementa.

Para Marques, é importante o profissional de saúde tomar conhecimento dos estudos científicos desses produtos, bem como conhecer a qualidade e diferenciações entre eles. “Isso é muito importante, pois muitos produtos, especialmente o mel, por vezes são falsificados”. De acordo com o médico, há centenas de estudos sobre o tema, que destacam o potencial dos produtos da abelha, como os efeitos positivos do mel e do própolis para pacientes diabéticos ou os efeitos anti-inflamatórios da apitoxina.

“Existe um artigo de 1974, referência ainda hoje em dia, publicado na revista ‘Nature’, que mostra que a toxina da abelha é 100% mais forte que a hidrocortisona como anti-inflamatório”, lembra. Estudos recentes de revisão sistemática tem confirmado esses achados e adicionado outros importantes para o uso clínico (3).

E elenca outros:

“Há pesquisas que comprovam o potencial do pólen no tratamento da hiperplasia prostática benigna, da própolis em casos de câncer, do mel para indicadores metabólicos, cicatrização e doenças infectocontagiosas, entre outras” (1).

O desafio maior é, segundo o médico, identificar que tipo de própolis ou de mel é mais indicado para esta ou aquela situação de saúde. A diferença entre os tipos de própolis está vinculada à sua origem botânica, desde a própolis verde, associada ao alecrim-do-campo (Baccharis dracunculifolia), à própolis vermelha, associada ao cajueiro.

“Na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], há um estudo feito in vitro que compara o própolis verde com o vermelho, na inibição do crescimento das células de câncer de próstata. O vermelho foi muito superior ao verde para este efeito anti-neoplásico”, exemplifica, ponderando que a grande maioria dos estudos da apiterapia é feita in vitro ou em animais (in vivo). “São poucos os estudos feitos em humanos. Esse é outro desafio que a apiterapia precisa enfrentar, para tornar-se mais conhecida”, observa. 

Uma exceção é a linha de pesquisa do professor titular da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Vagner Rodrigues Santos, demonstrando o efeito positivo da própolis verde para tratamento de doenças microbianas da cavidade oral, assim como mucosite induzida pela radioterapia, através de estudos clínicos, que vem gerando evidências para promover a própolis como um medicamento mais empregado em saúde pública regulamentado pela Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) (para saber mais, leia ‘Apiterapia: recursos produzidos pelas abelhas têm o reconhecimento de cientistas, pesquisadores e profissionais da saúde’).

 

Pesquisa clínica brasileira no contexto da Covid-19

Muito importante para o cenário atual epidemiológico da pandemia da Covid-19, segundo Marques, é o estudo de 2021 conduzido por cientistas brasileiros, realizado no Hospital São Rafael em Salvador, que avaliou a eficácia da própolis em pacientes com o novo coronavírus, liderado pelo pesquisador e médico Marcelo Augusto Duarte Silveira, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e do D’Or Institute for Research and Education (IDOR), em parceria com pesquisadores do Departamento de Genética da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Departamento de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da Apis Flora (2).

O estudo envolveu 124 pacientes com Covid-19 e comparou três grupos de pacientes, em que todos receberam o tratamento padrão para Covid-19, sendo que dois receberam de forma complementar dosagens diferentes de própolis. Um grupo de 40 pacientes recebeu 400 mg/dia de própolis, o outro grupo de 42 pacientes recebeu 800 mg/dia de própolis e um terceiro grupo de 42 pacientes não recebeu própolis. A administração oral da própolis não gerou nenhum efeito adverso e, nos dois grupos que receberam própolis, ocorreu uma diminuição significativa do tempo de internação. 

O terceiro grupo (controle), por sua vez, que não ingeriu própolis, ficou 12 dias hospitalizado após o início do tratamento. Já os grupos que receberam doses de 400 mg e 800 mg de própolis ficaram, respectivamente, apenas sete e seis dias internados, além de desenvolverem menos complicações, como as renais, em comparação com o grupo que recebeu apenas o tratamento padrão. Os pesquisadores que realizaram a investigação esclarecem que a própolis pode ter interferido na entrada do vírus no corpo humano, através da ação sobre proteínas específicas como portas de entrada nas células, o que contribuiu para a redução no tempo de hospitalização.

 

Referências

  1. Patel S. Emerging Adjuvant Therapy 1for Cancer: Propolis and its Constituents. J Diet Suppl. 2016;13(3):245-68. doi: 10.3109/19390211.2015.1008614. Epub 2015 Feb 27. PMID: 25723108.
  2. Silveira MAD, De Jong D, Berretta AA, Galvão EBDS, Ribeiro JC, Cerqueira-Silva T, Amorim TC, Conceição LFMRD, Gomes MMD, Teixeira MB, Souza SP, Santos MHCAD, San Martin RLA, Silva MO, Lírio M, Moreno L, Sampaio JCM, Mendonça R, Ultchak SS, Amorim FS, Ramos JGR, Batista PBP, Guarda SNFD, Mendes AVA, Passos RDH; BeeCovid Team. Efficacy of Brazilian green propolis (EPP-AF®) as an adjunct treatment for hospitalized COVID-19 patients: A randomized, controlled clinical trial. Biomed Pharmacother. 2021 Jun;138:111526. doi: 10.1016/j.biopha.2021.111526. Epub 2021 Mar 20. PMID: 34311528; PMCID: PMC7980186.
  3. Jang, Soobin, and Kyeong Han Kim. “Clinical effectiveness and adverse events of bee venom therapy: A systematic review of randomized controlled trials.” Toxins 12.9 (2020): 558.