Apiterapia: recursos produzidos pelas abelhas têm o reconhecimento de cientistas, pesquisadores e profissionais da saúde 

Caracterizada pela utilização de produtos provenientes das abelhas, como mel, própolis e o próprio veneno, a apiterapia revela-se eficaz para diferentes condições de saúde, como cicatrização, indicadores metabólicos e fisiológicos, doenças infectocontagiosas, saúde bucal, dor, câncer, bem-estar e qualidade de vida

Redação e Edição: Kátia Machado

Revisão Científica: Ricardo Ghelman, Caio Portella e Gelza Matos Nunes

Em 21 de março de 2018, a Apiterapia foi incorporada à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) do Ministério da Saúde brasileiro. Esta prática integrativa e complementar, caracterizada pela utilização de produtos provenientes das abelhas, como mel, própolis, geleia real, veneno da abelha (apitoxina), cera e pólen, para o tratamento e prevenção de diversas enfermidades, têm profundas raízes na medicina tradicional de vários povos do mundo. Praticamente, todas as civilizações antigas conhecem e utilizam os produtos das abelhas como valiosos recursos terapêuticos ancestrais, ganhando também o reconhecimento das civilizações atuais, em especial de cientistas, pesquisadores e profissionais da saúde do mundo ocidental, como sabemos pela história da Apiterapia (1).

O Mapa de Evidências da Efetividade Clínica da Apiterapia, produzido pelo Consórcio Acadêmico Brasileiro de Saúde Integrativa (CABSIN), o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde da Organização Pan-Americana da Saúde (Bireme/OPAS/OMS), com apoio da Coordenação Nacional das Práticas Integrativas e Complementares de Saúde do Ministério da Saúde e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por exemplo, verifica esses recursos e destaca as evidências científicas sobre os efeitos desta prática integrativa para diversas questões de saúde.

 

Benefícios produzidos pelas abelhas

Com base na sistematização de pesquisas provenientes da Índia (28 estudos), Egito (18 estudos), Irlanda (17 estudos), Paquistão (16 estudos), Canadá (13 estudos), Estados Unidos (10 estudos), Brasil (10 estudos) e China (10 estudos), o mapeamento aponta dezenas de benefícios para a saúde humana promovidos pelos produtos das abelhas. Realizado por um grupo de pesquisadores brasileiros da área, entre eles Erika Cardozo Pereira, que coordenou o trabalho, Rilkaelle Gomes de Melo Cerqueira, Andreza Beatriz Ellero, Mikhael de Mattos Marques, Verônica Abdala, Ricardo Ghelman, Caio Fabio Schlechta Portella e Mariana Cabral Schveitzer, o mapeamento revela que o mel, com maior concentração de evidências, mostrou-se eficaz em casos de cicatrização, indicadores metabólicos e fisiológicos, doenças infectocontagiosas, saúde bucal, dor, bem-estar, vitalidade e qualidade de vida.

“A maioria das evidências disponíveis concentra-se na aplicação do mel para o tratamento da mucosite relacionada ao câncer e no tratamento de feridas agudas e crônicas. A própolis, segunda intervenção da apiterapia mais estudada, foi aplicada no tratamento de placa dentária e na mucosite relacionada ao câncer”, detalha Pereira.

Ela esmiúça os efeitos positivos do mel de abelha para pele e mucosas, com base nas pesquisas analisadas:

“Temos desfechos nos casos de mucosite, em pacientes com câncer de cabeça e pescoço, cicatrização e epitelização de feridas, úlcera varicosa e úlcera do pé diabético, doenças Infectocontagiosas, como candidíase vaginal, herpes labial e infecções respiratórias, saúde bucal, com destaque para afta e periodontite”. Segundo a especialista, efeitos potencialmente positivos relacionados ao mel apareceram em quatro revisões, para infecção cutânea e subcutânea, cicatrização, tosse, herpes labial e genital e, associado ao própolis, para placa dentária e gengivite.  

Isso porque o mel, substância viscosa e aromática, constituída por 80% de açúcares como frutose e glicose, é rico em fósforo, cobre, potássio, vitamina C, ferro, tiamina (vitamina B1), riboflavina (vitamina B2), piridoxina (vitamina B6), ácido nicotínico (vitamina PP), ácido pantotênico e ácido fólico, cujas propriedades medicinais, especialmente antimicrobianas, estão diretamente relacionadas com a fonte de néctar que o originou e, também, com a espécie de abelha que o produziu. Já a própolis, uma mistura de resinas vegetais (55%), provenientes especialmente das cascas das coníferas (pinheiros), mesclados a cera (30%), a óleos essenciais de folhas e flores (10%) e ao pólen (5%), amolecidas pelas secreções salivares das abelhas, é rica em ácido 10-hidroxidocenóico. Dos mais de 400 compostos químicos já identificados na própolis, entre os principais compostos ativos estão os flavonóides, ácidos aromáticos, terpenóides, aldeídos, álcoois, ácidos alifáticos e ésteres, aminoácidos, esteróides e açúcares.

Segundo a coordenadora do mapeamento da apiterapia, os produtos apiterápicos possuem ação anti-inflamatória, antioxidante, antiviral, analgésica, cicatrizante, antimicrobiana, além de serem fonte de vários aminoácidos, minerais e vitaminas, atuando de forma protetora, terapêutica e cicatrizante em pele e mucosas lesadas. Associada ao mel, por exemplo, temos também a cera, substância oleosa secretada pelas glândulas cerígenas das abelhas e sintetizada pela redução de açúcares, e, dentro da cadeia produtiva, o pólen, rico em vitaminas e sais minerais, usado pelas abelhas para criar a geleia real, produto com sabor ácido, doce e picante, que contém hormônios, vitaminas, lipídios, aminoácidos, enzimas e outros componentes que contribuem para a regeneração celular e promotor da incrível longevidade da abelha rainha. Este produto real, de acordo com o mapeamento, tem indicação no tratamento da mucosite, da glicemia e hemoglobina glicada, enquanto o pólen, para os desfechos de qualidade de vida. 

O mapeamento também identificou os efeitos da apitoxina, extraída do veneno da abelha, com evidências no tratamento de dores e disfunções motoras.

“A apitoxina apresenta efeitos positivos para alívio da dor, com ênfase na dor articular, como osteoartrite, bursite de ombro, cervicalgia e lombalgia, assim como em doenças não transmissíveis como Doença de Parkinson, ovário policístico e transtornos da ATM (articulação temporomandibular)”, destaca Pereira, o mapeamento colabora para que a apiterapia tenha mais reconhecimento, esteja mais acessível e possa inserir-se efetivamente nos sistemas de saúde. 

A apiterapia na saúde bucal

Segunda intervenção mais pesquisada, conforme apontam os pesquisadores do Mapa da Apiterapia, a própolis apresenta efeitos positivos em vários indicadores metabólicos, demonstrando efeito de equilíbrio do metabolismo do colesterol, glicemia, hemoglobina glicada, efeito hepatoprotetor com redução das enzimas hepáticas e efeito anti-inflamatório, avaliado pelo TNF-Alfa (Fator de necrose tumoral alfa), IL-6 (interleucina-6) e PCR (proteína C reativa). O mapeamento traz, também, resultados positivos do uso da própolis nas doenças infectocontagiosas fúngicas, como tinha do couro cabeludo, Pitiríase versicolor e Herpes Genital, e em outras condições que necessitem de seu efeito antimicrobiano e cicatrizante.

Mas foi na saúde bucal que o produto, considerado o “ouro” das abelhas, mais se destacou, tanto no tratamento da bolsa periodontal, gengivite, infecção dentária, placa dentária, afta, periodontite e, na oncologia, dos casos de mucosite ou estomatite. Sabe-se que a mucosite é uma das principais complicações em pessoas submetidas à radioterapia na região de cabeça e pescoço. Os pacientes com câncer nesta região, submetidos à radioterapia, reduzem drasticamente a produção de saliva, antibiótico e antifúngico natural da cavidade oral, e, com a boca seca, a simples fricção da mucosa contra os dentes causa feridas, abrindo caminho para infecções bacterianas e fúngicas. Nos estágios avançados da doença, ainda pode ocorrer dificuldade para falar e se alimentar. 

Pesquisador do uso da própolis para patologias da boca, como a mucosite, desde os anos 1990, o professor titular da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Vagner Rodrigues Santos, mestre em microbiologia, doutor em patologia bucal e pós-doutor em farmacologia clínica, explica que a própolis, através de seus mais de 400 componentes químicos, reúne propriedades antibacterianas, antiinflamatorias, antifúngicas e cicatrizantes, além de ser um potente antioxidante. 

Ele lembra um importante estudo que coordenou, baseado na aplicação de um gel à base de própolis verde, para tratamento de doenças microbianas da cavidade oral, publicado em 2012. O produto, fruto de anos de estudos, foi produzido em parceria com a Pharmanectar, empresa de Minas Gerais que tem seu próprio apiário, tendo atendido centenas de pacientes encaminhados por hospitais da Região Metropolitana de Belo Horizonte e do interior de Minas Gerais.

“Em 1994, orientei uma aluna do curso de Odontologia da UFMG, quando então recolhemos diversos extratos de própolis no mercado com ação contra a candidíase oral. Foi o primeiro trabalho de odontologia com própolis realizado no país, e premiado. A partir daí, a investigação foi ganhando corpo até chegar ao gel à base de própolis”, recorda (2).

No cuidado de pacientes tratados por ele e sua equipe, verificou-se que, depois de sete dias de uso, as lesões reduziram na ordem de 70% a 80% e, após 15 dias, as lesões desapareceram. O gel foi, também, aplicado de forma preventiva para evitar lesões induzidas pela radioterapia, 3x ao dia, antes e durante todo o processo de radioterapia.

“Orientamos muitos pacientes nesse sentido e percebemos que eles não desenvolveram a mucosite”, revela, acrescentando o efeito do gel de própolis no aumento à adesão ao tratamento: “É preciso lembrar que muitos pacientes interrompem o tratamento da radioterapia, pois não conseguem se alimentar mais, diante das feridas provocadas pela mucosite” (2).

Santos realça que o gel, além de eficaz, é mais barato e mais eficaz, quando comparado ao protocolo de saliva artificial associada a antifúngico e analgésico, usados comumente nos hospitais no tratamento da mucosite.”Precisamos de mais pesquisas no Brasil para que possamos avançar com o registro do gel a base de própolis como medicamento pela Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], o que exige a realização de estudos clínicos de fase 3, com um número maior de pacientes para ser usado pelo sistema de saúde”, esclarece o professor, ponderando que um estudo multicêntrico, de fase 3, demanda tempo e financiamento.

Um outro estudo clínico conduzido pelo mesmo grupo da UFMG avaliou o efeito do gel para herpes labial, que se mostrou mais eficaz que o medicamento aciclovir, como também no tratamento de aftas e da bolsa periodontal. “Após a limpeza dos dentes, o gel foi inserido na bolsa periodontal, promovendo a redução e/ou seu desaparecimento”, conta o professor (3).

Outra pesquisa clínica do mesmo grupo brasileiro, sob o título “Verniz de Própolis: Propriedades antimicrobianas contra bactérias cariogênicas, citotoxicidade e perfil de liberação sustentada”, apresenta os resultados positivos das preparações de verniz de própolis contra as bactérias Streptococcus mutans, Streptococcus sanguinis, Streptococcus salivarius e Lactobacillus casei, além da baixa citotoxicidade em osteoblastos (4). “Testamos primeiro in vitro e, depois, em in vivo, e observamos que o Streptococcus mutans, bactéria responsável pela produção de cáries na boca, entre outras, diminuiu substancialmente com a aplicação do verniz de própolis”, esclarece. Os resultados obtidos em ratos foram muito significativos, com redução da população microbiana.

Esta pesquisa possui um papel muito promissor na promoção da saúde bucal da população pediátrica, mas é necessário avançar em um produto com maior aceitação pelas crianças, pois o sabor forte da própolis, segundo os pesquisadores, dificultou testar o verniz de própolis na boca das crianças. De acordo com o professor Santos, o uso do produto nos dentes decíduos, conhecidos como dentes de leite, e nos dentes das crianças, como um todo, reforça os cristais de hidroxiapatita do esmalte, além de controlar o crescimento das bactérias cariogênicas. “Portanto, tem o mesmo papel da aplicação do flúor, sendo mais isento de efeitos adversos”, compara.

Achados brasileiros do mel

Além do mapeamento, os benefícios do mel são confirmados na dissertação de mestrado de Carol Viviana Serna Gonzalez, defendida em 2017, pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP). Sob o título ‘Avaliação do mel de Apis mellifera na cicatrização de feridas cutâneas em camundongos diabéticos’, Gonzalez investigou o desempenho do mel de abelha sobre as feridas de difícil cicatrização em animais diabéticos, associadas ao estresse oxidativo. 

A dissertação, que teve como objetivo avaliar a atividade biológica do mel de Eucalipto da Apis mellifera, produzido no Brasil, em comparação com o de Manuka, produzido na Nova Zelândia, na cicatrização por meio de estudo experimental com camundongos diabéticos, induzidos com Aloxana, revela que os dois tipos de mel aceleram a cicatrização dos animais diabéticos de 18 dias para 15. “A morfologia da ferida no dia 3 já apresentava um melhor aspecto nos animais tratados”, escreve a pesquisadora, concluindo que tanto o mel de Eucalipto como o de Manuka promovem a cicatrização de maneira similar, provavelmente pelo efeito antioxidante e o conteúdo de ácidos fenólicos que possuem (5).

 

Referências

  1. Seijaz, José Luiz Vasquez. Apiterapia – Verdade Incontestável.
  2. Vagner Rodrigues Santos, Própolis: alternative medicine for the treatment of oral microbial diseases. In: ed. Sakagami H, Alternative Medicine, Intech Open, Rijeka, Croatia. Chapter 7, pp 133-169, 2012.
  3. Santos VR, Pereira EMR. Antifungal activity of Brazilian medicinal plants against Candida albicans. In:  Doblin Sandai ed., Candida Albicans, IntechOpen, London. Chapter 2, pp 19- 47, 2019. 
  4. De Luca MP, Franca JR, Macedo FA, Grenho L, Cortes ME, Faraco AA, Moreira AN, Santos VR. Propolis varnish: antimicrobial properties against cariogenic bacteria, cytotoxicity, and sustained-release profile. Biomed Res Int. 2014;2014:348647. doi: 10.1155/2014/348647. Epub 2014 May 13. PMID: 24949436; PMCID: PMC4052844.
  5. Gonzalez, Carol Viviana Serna. Avaliação do mel de Apis mellifera na cicatrização de feridas cutâneas em camundongos diabéticos [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo, Instituto de Ciências Biomédicas; 2016 [citado 2022-01-05].