O uso tradicional de plantas medicinais no SUS ganha expressividade com um projeto inovador, nascido no Nordeste brasileiro na década de 1980, abrangendo o cultivo e o beneficiamento de plantas medicinais, além da dispensação de fitoterápicos na forma de preparações magistrais e oficinais

Edição e redação: Katia Machado (Fiocruz)

Revisão científica: Ricardo Ghelman e Caio Portella (CABSIN)

O uso de plantas medicinais no cuidado e na promoção da saúde consiste em prática tradicional secular, tendo há décadas o reconhecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 1978, na Declaração de Alma-Ata, a OMS expressou a sua posição a respeito da necessidade de valorizar a utilização desses recursos naturais e eficazes no âmbito sanitário, uma vez que 80% da população mundial já utilizava plantas medicinais ou suas preparações na atenção primária à saúde. O Brasil, que tem a maior biodiversidade do planeta, traduzida em mais de 20% do número total de espécies vegetais da Terra, o que o eleva ao posto de principal nação entre os 17 países megadiversos, traz importantes contribuições quanto à discussão da tradicionalidade do uso de plantas medicinais. Várias dessas plantas, usadas com eficácia no cuidado de diferentes enfermidades, foram descritas desde a chegada dos primeiros europeus ao continente no século XVI, como é o caso das plantas nativas barbatimão, copaíba, carapiá, espinheira-santa, guaco e guaraná. 

No SUS, considerado o maior sistema público de saúde do mundo, o uso tradicional de plantas medicinais é considerado indicativo de efetividade e segurança pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), autarquia do Ministério da Saúde responsável pelo controle e regulação de produtos e serviços de saúde, ganhando impulso com a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) e a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos. A primeira, aprovada em maio de 2006, engloba na atualidade 29 recursos integrativos e complementares de saúde, entre eles as plantas medicinais e a fitoterapia. A segunda, específica deste campo do saber, foi aprovada em junho de 2008, com vistas a garantir acesso seguro e uso racional de plantas medicinais e fitoterápicos no país, além de buscar o desenvolvimento de tecnologias e inovações, o fortalecimento das cadeias e dos arranjos produtivos, o uso sustentável da biodiversidade brasileira e o desenvolvimento do complexo produtivo da saúde. 

 

Projeto inovador nos territórios do SUS

É, no contexto da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, que surge em 2010 um projeto inovador, as Farmácias Vivas. Este modelo, proposto em 1983 e assim denominado pelo farmacologista e Professor emérito da Universidade Federal do Ceará, Francisco José de Abreu Matos, abrange o cultivo e o beneficiamento de plantas medicinais, além da dispensação de fitoterápicos na forma de preparações magistrais e oficinais. Vinculadas à atenção primária à saúde, principal porta de acesso ao SUS, as Farmácias Vivas ampliam o acesso à medicação preparada com plantas que tiveram confirmação da atividade a elas atribuídas, colhidas nas próprias hortas, e à fitoterapia, com segurança, eficácia e qualidade, na perspectiva da integralidade da atenção à saúde, considerando o conhecimento tradicional e científico sobre essas espécies vegetais. 

O propósito do professor Matos, quando traz à tona esta metodologia, era levar às comunidades dois níveis de atendimento: preparação de fitoterápicos, prescrição e dispensação na rede pública de saúde; e orientação sobre o uso correto de plantas medicinais e preparação de remédios caseiros, com garantia de eficácia e segurança, baseado em hortos medicinais constituídos de plantas medicinais com certificação botânica.

O Ceará, berço deste projeto reconhecido mundialmente, abriga um horto matriz com o nome de seu criador, que faleceu em dezembro de 2008, aos 84 anos. O Horto de Plantas Medicinais Prof. F. J. A. Matos é considerado um dos únicos bancos de germoplasma de plantas medicinais do Brasil, com registros de estudos científicos sobre plantas medicinais regionais, compreendendo áreas de botânica, farmacologia, agronomia, farmacognosia e farmacotécnica. 

O estado conta, também, com um horto oficial de plantas medicinais, vinculado ao Núcleo de Fitoterápicos da Coordenadoria de Assistência Farmacêutica da Secretaria de Estado da Saúde do Ceará (Nufito/Coasf/Sesa), onde os trabalhos são desenvolvidos de maneira integrada, incluindo o repasse de mudas certificadas de plantas medicinais e o apoio técnico-científico para a implantação de unidades de Farmácias Vivas, classificadas de acordo com a distinção dos serviços prestados à população. “Algumas trabalham especificamente com a manipulação de chás e outras, além da manipulação, distribuem mudas e preparados farmacotécnicos como pomadas, xaropes e cápsulas”, explica Mary Anne Medeiros Bandeira, que já atuou na unidade matriz e, hoje, é presidente da Associação Brasileira de Farmácias Vivas e professora de farmacologia e do Programa Farmácias Vivas da Universidade Federal do Ceará (UFC).

A implantação de uma unidade pode ser realizada por meio de três níveis de complexidade: o modelo 1 pressupõe a instalação do Horto de Plantas Medicinais e o desenvolvimento de trabalhos comunitários, com orientação sobre o uso correto de plantas medicinais e preparação de remédios caseiros; o modelo 2, a instalação do horto de plantas medicinais, incluindo o beneficiamento primário e o desenvolvimento da agricultura familiar; e o modelo 3, a instalação do horto, a preparação de fitoterápicos em oficina farmacêutica e a prescrição e a dispensação de fitoterápicos no SUS. 

“A Farmácia Viva modelo 1 é aquela que conta com a implantação do horto de plantas medicinais, onde tem a certificação botânica. Ali, orientamos as preparações de remédios caseiros in natura, como chás, cozimentos e lambedores. A tipo 2 inclui a orientação do beneficiamento primário, que seria a droga vegetal propriamente dita, ou seja, seriam os sachês. A tipo 3, que é um nível mais complexo, conta com oficinas farmacêuticas e a preparação de fitoterápicos dispensados no SUS. O fitoterápico propriamente dito vai na dosagem correta”, detalha Mary Anne. 

O elenco das plantas medicinais da Farmácia Viva segue até hoje critérios apresentados por Matos: ter eficácia e segurança terapêuticas comprovadas; atender ao perfil epidemiológico da população; e ser de fácil cultivo e manejo. Dentro desse contexto, os programas podem oferecer o recurso nas formas: planta fresca (in natura), sendo ela coletada no momento de uso; planta seca (droga vegetal), trazendo as substâncias responsáveis pela ação terapêutica, após os processos de coleta, estabilização e secagem; fitoterápico manipulado, preparados em farmácias e autorizados pela Vigilância Sanitária; e fitoterápico industrializado, produzido e comercializado mediante registro na Anvisa).

“O projeto tornou-se filosofia de trabalho. É um programa social, uma vez que preconiza a disponibilização de plantas medicinais à comunidade, com eficácia e segurança comprovadas cientificamente. Hoje, a Farmácia Viva exerce o papel de ser a fronteira entre o uso popular e o científico, levando a informação científica à comunidade”, descreve a especialista. 

Segundo Mary Anne, o projeto carrega aspectos de cuidado com a comunidade e a natureza e de educação, ao envolver comunidade, escolas e universidades. Mas tem alguns desafios a enfrentar: por se tratar de um projeto, a Farmácia Viva do SUS não conta com um financiamento fixo, o que dificulta a sua sustentabilidade. Na atualidade, a implantação dessas unidades depende de editais de fomento do Ministério da Saúde. “Nossa luta é por um projeto de lei que dê sustentabilidade ao trabalho. Buscamos também pela revisão de uma Resolução da Anvisa, RDC 18, que trata da manipulação de fitoterápicos nas Farmácias Vivas, com vistas a fortalecer o controle de qualidade dos fitoterápicos”, anuncia a presidente da Associação. 

 

Exemplos de sucesso

No Distrito Federal, duas unidades de Farmácias Vivas manipulam e ofertam fitoterápicos aos usuários dos serviços de saúde, em consonância com o Formulário de Fitoterápicos da Farmacopeia Brasileira. Da lista de fitoterápicos ofertados estão: Xarope de guaco (Mikania laevigata); Tintura de guaco (Mikania laevigata); Infusão de guaco (Mikania laevigata); Tintura de boldo nacional ou africano (Plectranthus barbatus); Tintura de funcho (Foeniculum vulgare); Gel de erva baleeira (Cordia verbenacea); Gel de confrei (Symphytum officinale); Gel de babosa (Aloe vera); e Gel de alecrim pimenta (Lippia sidoides). Este último é usado como antisséptico e fungicida, o de babosa, para cicatrização, o de confrei, usado em hematomas e machucados em geral, e o de erva baleeira tem se mostrado muito eficaz como anti-inflamatório. Em forma de tintura, o boldo e o funcho têm indicação para problemas estomacais e o guaco, carro-chefe da Farmácia Viva, é muito utilizado no combate a resfriados. Sua produção também pode ser em forma de xarope, ideal para crianças por ter sabor adocicado.

Uma das unidades, de Riacho Fundo, é fruto de um Projeto de Fitoterapia de 1989. Segundo informações da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), Riacho Fundo mantém o cultivo próprio de sete espécies vegetais medicinais e produz nove fitoterápicos oficinais, realizando todo o processo de produção, começando pelo cultivo da planta medicinal, seguindo com a colheita, a triagem, a secagem e, por fim, o processo de extração no laboratório, onde são obtidos as tinturas e os extratos, que podem ser usados como produto acabado ou como matéria prima para produção de outros produtos. A unidade iniciou com a padronização de dez espécies vegetais. Na ocasião, foram selecionadas a Ageratum conyzoides (mentrasto), a Allium sativum (alho), a Aloe vera (babosa), a Cymbopogon citratus (capim santo), a Lippia sidoides (alecrim pimenta), a Matricaria recutita (camomila), a Maytenus officinalis (espinheira santa), a Mentha villosa (hortelã), a Mikania laevigata (guaco) e a Plectranthus barbatus (boldo nacional). 

Já a Farmácia Viva do Centro de Práticas Integrativas (Cerpis) de Planaltina nasce com o plantio de um canteiro de plantas medicinais oriundas da coleção do professor de agronomia Jean Kleber, da Universidade de Brasília, e os cuidados de um raizeiro e técnico agrícola do interior da Bahia, Sr. Reinaldo Lordelo, ao lado do Hospital Regional de Planaltina.

Na região, de acordo com a SES-DF, a fitoterapia desenvolveu-se com a participação popular e a ampliação dos canteiros, resultando na constituição de uma unidade de saúde, vinculada ao hospital, para ofertar também outras Práticas Integrativas e Complementares de Saúde, como homeopatia, acupuntura e automassagem. A unidade se fortalece com a construção, em 1995, de um laboratório para manipulação das plantas medicinais, dando início à produção e à distribuição de fitoterápicos.

O Cerpis caracteriza-se, na atualidade, como uma unidade básica de Práticas Integrativas e Promoção da Saúde, contando com o Núcleo de Farmácia de Manipulação de Planaltina (NUFAR) e a Farmácia Viva do Cerpis, vinculados administrativamente à Diretoria de Atenção Primária da Região de Saúde Norte da SES-DF. Segundo a Pasta, a unidade desenvolve o cultivo e o fornecimento de mudas de plantas diretamente para a população e para fomento de hortos medicinais em unidades de saúde, escolas e instituições afins, bem como a produção e o fornecimento de fitoterápicos oficinais, no contexto da assistência farmacêutica da Região de Saúde Norte, o fornecimento de plantas medicinais in natura para preparações caseiras, juntamente com educação em saúde para o seu uso correto, além de rodas de conversa e oficinas de promoção do uso racional de plantas medicinais e remédios caseiros, formação e pesquisas científicas sobre plantas medicinais e fitoterapia, cuidado farmacêutico em Fitoterapia e matriciamento de equipes de saúde em plantas medicinais e fitoterapia.

Na mesma direção, em Manaus, capital do Amazonas, foi construída a Horta Medicinal da Unidade Básica de Saúde Ivone Lima dos Santos, tendo atualmente, em sua área, a plantação de mudas de hortelã, capim santo, babosa, cidreira, crajiru, chambá, dentre outras. O projeto, construído e orientado pelo fiscal de saúde do município de Manaus e farmacêutico da Vigilância Sanitária, Fabio Markendorf, foi motivado pela necessidade de se compreender os processos produtivos relacionados às plantas medicinais selecionadas para o programa Farmácia Viva da Secretaria Municipal de Saúde de Manaus (SEMSA).

“Eu requisitei algumas mudas para plantio doméstico, quando da visita técnica aos campos experimentais da Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária]”, recorda Markendorf. 

Ele explica que a vivência experimental é extremamente enriquecedora e revela dificuldades que muitas vezes não estão descritas na teoria. Por isso, iniciou, na ocasião, o cultivo das espécies em pequenos vasos, ainda com recursos próprios. “Com o decorrer das reuniões de planejamento com o grupo de trabalho, envolvendo a SEMSA, a Embrapa e a UFAM [Universidade Federal do Amazonas], várias outras necessidades e objetivos foram levantados”, detalha.  Ele conta que, conforme o cultivo doméstico evoluiu, a necessidade de se desenvolver procedimentos para o processamento das plantas tornou-se latente. Desta forma, desenhou o projeto de um sistema de desidratação para uso no processamento das plantas medicinais, em caráter experimental, o que envolveu, com recursos próprios, algumas compras internacionais e outras no mercado local. “Apesar da aparente informalidade do trabalho realizado desta forma, houve registro cuidadoso dos dados, visando à avaliação de rendimentos e aprimoramento das metodologias de processo”, detalha. 

O projeto proposto por Markendorf resultou, inicialmente, na distribuição seletiva de embalagens de chambá (Justicia pectoralis) a 30 idosos, aproximadamente.

“Houve o acompanhamento do grupo e foram colhidas informações valiosas acerca da experiência pessoal destes com o tratamento.  Os dados coletados orientaram os ajustes da formulação proposta para infusão à base de chambá”, conta. A planta utilizada popularmente, na forma de chá ou lambedor, tem indicação no tratamento de asma, tosse, febre, dor e bronquite. “As melhorias envolvem não somente o ajuste da formulação do chambá, como também sua associação com o alho e o gengibre, não apenas pela natureza farmacológica que estes recursos apresentam, mas especialmente pelo caráter afetivo, intimamente associado ao cuidado, aumentando de modo significativo a aceitabilidade da formulação proposta e sucesso do tratamento”, complementa o especialista.

O gengibre (Zingiber officinale), indicado para a prevenção de náuseas e enjoo causados por movimento (cinetose) e pós-cirúrgicos, e o alho (Allium sativum), que contribui no processo digestivo e favorece a manutenção da flora intestinal normal, foram também prescritos na forma de sachês. 

Para que o uso das plantas medicinais possa avançar de forma segura e sustentável, Markendorf faz defesa por melhorias nas medidas de controle e fiscalização e sugere ações educativas junto aos profissionais e à comunidade. “A população, em especial, não faz diferença entre um bom produto, feito em uma Farmácia Viva, por exemplo, que tem controle de qualidade e segue as boas práticas, e um produto que não tem segurança alguma, como as garrafadas, mas que está disponível no mercado”, compara. Ele acrescenta: “O trabalho da vigilância deveria ser mais educativo do que regulatório”.