Práticas complementares e eficazes no tratamento da dor

Seguras e com resultados eficazes, as práticas integrativas e complementares são cada vez mais indicadas no tratamento da dor crônica, como a popular “dor nas costas”, que em 2017 foi responsável por mais de 10% dos afastamentos do trabalho no Brasil. Os benefícios dos recursos integrativos são analisados pelos Mapas de Evidências Clínicas em MTCI.

Redação: Katia Machado
Revisão: Caio Portella, Ricardo Ghelman e Gelza Nunes
 
Cerca de 60 milhões de pessoas – 37% da população brasileira – relataram sentir alguma dor crônica, aquela que persiste ou recorre por mais de três meses. O estudo da Sociedade Brasileira de Estudos da Dor (SBED), realizado em 2018, apresenta a cefaleia entre as dores com maior prevalência na sociedade brasileira, relatada por cerca de 34 milhões de pessoas. Seguida dela, está a dorsalgia, nome técnico dado à popular dor nas costas, que foi responsável por 83,8 mil afastamentos do trabalho, em 2018, e mais de 10% dos afastamentos e pedidos de entrada no benefício do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), no ano de 2017. Esta dor na região da coluna ocupa o primeiro lugar no ranking das doenças mais prevalentes na humanidade, conforme levantamento realizado pela Universidade de São Paulo e pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, feito em 2019, lançando luz ao alerta da Organização Mundial da Saúde (OMS): 80% dos adultos irão sofrer pelo menos uma crise aguda de dor nas costas durante a vida, sendo que 90% das pessoas poderão ter mais de uma vez.
A Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP, sigla em inglês) esclarece que a dor é uma experiência sensitiva e emocional desagradável, associada ou relacionada a lesão real ou potencial dos tecidos. “Cada indivíduo aprende a utilizar esse termo através das suas experiências anteriores”, descreve a instituição. Na visão ampliada das Medicinas Tradicionais, Complementares e Integrativas (MTCI), como elucida o médico e pós-doutor em Neurociência na área de dor e Medicina Antroposófica e presidente do Consórcio Acadêmico Brasileiro de Saúde Integrativa (CABSIN), Ricardo Ghelman, trata-se de uma experiência que abrange aspectos neurofisiológicos somáticos e psíquicos de um indivíduo com sua biografia que incorpora aspectos noéticos, ou seja, fenômenos subjetivos da consciência, da mente, do espírito e da vida.

“Esta dimensão noética [espiritual] influencia diretamente a resiliência e a percepção da dor, uma vez que se refere à manifestação da individualidade sobre a psique”

Explica Ghelman. No estudo ‘A dor e seu significado no contexto da Medicina Antroposófica’1, aplicado também em outra pesquisa com pacientes com dor crônica pela síndrome pós poliomielite na Escola Paulista de Medicina2, Ghelman realça a importância de se avaliar se o paciente compreende ou não sua dor, se a dor faz ou não faz sentido e se ele percebe que sua dor é manuseável ou não sabe o que fazer com a dor. Estes três aspectos da resiliência (compreensão, manejo e significado) podem ser mensurados pelo questionário de Senso de Coerência de Antonovsky, validado no Brasil pela Universidade de São Paulo (USP), e tornando-se ferramenta muito útil para expandir a compreensão da dor crônica.

Desígnios das práticas sobre a dor

Um mapeamento das evidências dos efeitos clínicos e terapêuticos das Práticas Integrativas e Complementares em saúde (PICS) – ou das MTCI, como a OMS nomeia – revela os benefícios  dos recursos integrativos e complementares não farmacológicos e farmacológicos para as pessoas que sofrem de dores lombar, cervical, cefaleia, cefaleia tensional, enxaqueca e, também, de fibromialgia. Sob a orientação do CABSIN e do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde da Organização Pan-Americana da Saúde (Bireme/OPAS/OMS), com o apoio da Coordenação Nacional das Práticas Integrativas e Complementares de Saúde do Ministério da Saúde, os chamados Mapas de Evidências Clínicas em MTCI, no que tange às dores crônicas, destacam os recursos integrativos de auriculoterapia, meditação, práticas corporais da medicina chinesa, a exemplo do Tai Chi e da Qigong, yoga, reflexologia e massagem.
Estudo publicado em 2019, no Brasil, conclui que a acupuntura auricular – recurso integrativo mais utilizado no SUS, entre os anos de 2017 e 2019 – é uma prática promissora para o tratamento da dor crônica na região das costas em adultos3. Na mesma direção, outro estudo sobre a eficácia deste recurso na dor lombar crônica4, publicado nos Estados Unidos, no ano de 2017, recomenda fornecer a auriculoterapia a pacientes com dor lombar.
A meditação teve seus efeitos avaliados sobre as várias dores crônicas, incluindo a dor pélvica. Estudo publicado na Inglaterra, em 2017, responde a questão: “A meditação da atenção plena melhora a dor crônica?”5. A partir da compreensão de que os fatores psicológicos estão associados à dor crônica e de que a meditação pode melhorar os sintomas, os autores do estudo concluíram que a prática tem efeito mais proeminente nos aspectos psíquicos dos portadores de dor crônica, “melhorando a depressão associada e a qualidade de vida”.
As dores crônicas, em face dos desafios que as envolvem, exigem uma compreensão abrangente do quadro clínico do indivíduo, baseada no entendimento da fisiopatologia.

“A relação médico-paciente no que tange à dor crônica deve ser permeada por decisão compartilhada e tratamentos não farmacológicos com base em evidências”

Sublinha a pesquisadora em PICS da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais e diretora do CABSIN, Gelza Matos Nunes, citando pesquisa sobre a dor lombar6, publicada em 2018, no The Lancet, por meio da qual uma das dores mais relatadas pela população mundial revela-se como uma condição complexa, influenciada por mudanças estruturais e fisiológicas nos sistemas nervosos periférico e central, e, por isso, modulada pelo bem-estar psicológico e estilo de personalidade, humor, sono, nível de atividade e circunstâncias sociais, o que implica a necessidade de uma abordagem multidisciplinar.
Conforme estudo publicado em 2017, sobre terapias não farmacológicas para dor lombar7, no periódico Annals of Internal Medicine, fica evidenciada a eficácia do modelo multimodal e multidisciplinar para a lombalgia crônica, incluindo simultaneamente no plano do tratamento a prática do Tai Chi, da meditação mindfulness, da manipulação da coluna vertebral, massagem e acupuntura. Os autores da pesquisa enfatizam, também, a eficácia do exercício físico e da psicoterapia.
Pesquisa publicada em outro periódico respeitado na área da saúde, JAMA Internal Medicine em 2018, sobre a eficácia das terapias cognitivas e mente-corpo para dor lombar crônica e dor cervical8, comprovou, por sua vez, que quando a acupuntura, a meditação e o yoga foram aplicados, houve redução significativa da dor e melhora da função corporal. Ao analisar o artigo, Gelza destaca:

“As práticas integrativas e complementares (PICS) apresentaram benefícios significativos em comparação com os tratamentos usuais isolados”.

A pesquisa revela que, após seis meses, 60% dos pacientes do grupo de meditação apresentaram redução significativa de dor versus 44% dos pacientes que utilizaram os tratamentos convencionais.

“Além do mais, o emprego destas PICS promoveu aumento da produtividade no trabalho e redução no uso de opióides”
 

Recursos comprovados para dor

Reconhecida pela Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do SUS (PNPIC), dentre um rol de 29 procedimentos integrativos e complementares que são ofertados de forma gratuita e integral à população no SUS, a yoga foi eficaz no tratamento das dores lombar e cervical e na redução de uso de analgésicos, conforme estudo destacado pelos Mapas de Evidências Clínicas em MTCI e publicado em 2011, na National Library of Medicine9. O trabalho científico comprovou que este recurso integrativo e complementar levou a uma redução significativa da dor lombar quando comparado aos cuidados habituais, educação e/ou exercícios terapêuticos convencionais. Vale destacar um crescimento substancial na ordem de três a quatro vezes na oferta de atividades coletivas de PICS no SUS, como a yoga e o Tai Chi, saltando de 25.206 intervenções, em 2017, para 104.531, em 2019, o que permitiu sair dos 322.650 participantes para 942.970 em dois anos.
Um exemplo, neste contexto, é o projeto Recife Integrativo, que faz parte da Política Municipal de Práticas Integrativas e Complementares (PMPIC) da Prefeitura de Recife, no nordeste brasileiro. O projeto, ofertado atualmente de forma virtual, face à pandemia do Covid-19, é formado por um arcabouço terapêutico, incluindo práticas corporais, psicoemocionais e pedagógicas, capazes de tratar dores, diminuir a ansiedade, conhecer mais sobre si mesmo e trazer bem-estar. Entre elas, destacam-se a yoga-terapia, a Hatha Yoga, a Yoga-Asana, entre outras práticas corporais. “Trata-se de práticas que ajudam a cuidar do corpo, trabalhando a energia interior, trazendo disposição e eliminando dores”, explica o coordenador da PMPIC de Recife, Nicolas Augusto.
Os Mapas de Evidências Clínicas em MTCI permitiram, ainda, a análise dos benefícios das PICS sobre a fibromialgia, condição muito frequente e de difícil controle na população brasileira. A fibromialgia, cuja característica principal é a dor não localizada que pode abranger o corpo todo durante longos períodos, pode estar associada a alterações de hábitos, como o distúrbio do sono, o sedentarismo, a ansiedade e a depressão, ou a algum trauma físico ou emocional, gerando estresse pós-traumático, o que faz merecer uma abordagem sistêmica. Um dos estudos analisados, que tratou da eficácia do Tai Chi em pacientes com fibromialgia10, revelou que a tradicional prática corporal da Medicina Chinesa exerceu benefícios significativos nos pacientes com a síndrome fibromiálgica quando comparado aos cuidados padrão. “Portanto, sugerimos que o Tai Chi possa ser usado como um tratamento complementar em saúde pública”, escrevem os autores da pesquisa publicada em 2019.
Os resultados apresentados pelos Mapas de Evidências vão ao encontro das recomendações da European League Against Rheumatism (EULAR)11, que inclui a realização de exercícios aeróbicos e de fortalecimento, em associação ao Qigong, à Yoga e ao Tai Chi, bem como à meditação mindfulness e à acupuntura. Estas duas últimas práticas fazem também parte da diretriz clínica da American College of Physicians12. De acordo com a instituição, tanto a meditação mindfulness quanto a acupuntura são fortemente recomendadas no tratamento da dor lombar crônica, juntamente com os exercícios físicos e a reabilitação multidisciplinar. “Isso evidencia que o tratamento da dor exige disciplina e conhecimento sobre si próprio. Implica, também, associar os recursos integrativos a mudanças de hábito, a um estilo de vida mais saudável”, explica Caio Portella, pesquisador e diretor do CABSIN.
Vale destacar estudo brasileiro conduzido pelo Grupo de Atenção Integral e Pesquisa em Acupuntura e Medicina Tradicional Chinesa, da Universidade Federal do Ceará (UFC), sob a coordenação do professor do Departamento de Fisioterapia da UFC, Bernardo Diniz Coutinho, no qual a acupuntura, associada ao tratamento fisioterápico e medicamentoso, mostrou-se mais efetiva que o tratamento padrão para redução da dor lombar, tanto de modo imediato, quanto a curto e médio prazos13.
Os Mapas de Evidências Clínicas em MTCI tratam, também, dos efeitos das plantas medicinais e fitoterapia sobre as dores crônicas. Estes recursos integrativos e complementares farmacológicos foram eficazes no tratamento da artrite reumatoide, doença inflamatória crônica de origem auto-imune que causa dores nas articulações sejam nos dedos das mãos e pés, dos joelhos e tornozelos, dos cotovelos e ombros e/ou na região do quadril, a exemplo de uma revisão sistemática sobre terapia à base de plantas para o tratamento da artrite reumatoide, publicada em 2011 na Itália14. Foram mapeadas plantas medicinais com efeito analgésico como o Allium sativum (alho), a Aloe vera (babosa) e a Camellia sinensis (chá-da-índia ou chá verde).
As análises estão em consonância ao que se preconiza no Brasil: as plantas medicinais, espécies vegetais que administradas por qualquer via ou forma exercem ação terapêutica, e a fitoterapia, terapêutica caracterizada pelo uso de plantas medicinais em suas diferentes formas farmacêuticas, com controle de qualidade pela dosagem de marcadores biológicos – sem a utilização de substâncias ativas isoladas –, envolvem a interação entre saberes, ações multiprofissionais no cuidado com a saúde, ações de promoção, prevenção e terapêutica em patologias, além de incentivarem o desenvolvimento comunitário, a solidariedade, a participação social, a autonomia das pessoas e o cuidado integral em saúde.

Referências 

  1. Ghelman R. A dor e seu significado no contexto da Medicina Antroposófica. In: Pimenta CAM, Kurita GP, Galvão ACR, Corrêa CF. Simbidor – Arquivos do 8º Simpósio Brasileiro e Encontro Internacional sobre Dor. São Paulo: Office Editora; 2007. p. 277.
  2. Ghelman, R., Akiyama, I. Y., de Souza, V. T., Falcão, J., Orgolini, V., Hosomi, J. K., Quadros, A., & Oliveira, A. A twelve-week, four-arm, randomized, double-blind, placebo-controlled, phase 2 prospective clinical trial to evaluate the efficacy and safety of an anthroposophic multimodal treatment on chronic pain in outpatients with postpolio syndrome. Brain and behavior10(4), e01590, 2020. https://doi.org/10.1002/brb3.1590.
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